Todo dia 27 de janeiro, no mundo todo celebra-se o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, que resultou no genocídio de seis milhões de judeus, ciganos, homossexuais e opositores do nazismo. O dia serve para a humanidade fazer uma reflexão, bem como para se lembrar que fatos como esse nunca mais devem se repetir. Foi em 27 de janeiro de 1945 que o Exército soviético chegou aos campos de concentração de Auschwits e Birkenau e liberou milhares de pessoas. Para relembrar esse triste momento da história da humanidade apresentamos o conto do jornalista italiano Lorenzo Franzetti – publicado há alguns anos no site cyclemagazine, e traduzido por George Panara para Ciclismo Pro e agora publicado por MundoBici. Misturando realidade com ficção Franzetti nos leva ao mundo dos sonhos de uma criança. O sonho do velódromo e de correr livre por uma pista.
O DIA DA MEMÓRIA: SONHO E TERROR NO VELÓDROMO
Daniel corria pelo quarto com seu calçado com solado de cordas que derrapava no piso de madeira. Ao redor da mesa vazia, raspava as nas cadeiras como um velocista sobre o anel mais mágico do mundo. Não era uma pista qualquer, os seus olhos viam a pista dos sonhos: o Vel’ de Hiv. As costas curvas, mãos à frente como um ciclista. Daniel era o ciclista, o herói de milhares de torcedores que via no lugar de uma cômoda desconjuntada com as gavetas corroídas por cupins.
Um pequeno lustre descia do teto a quase um metro sobre a mesa, projetando sombras na paredes. Sombras que para Daniel eram a torcida nas arquibancadas íngremes e lotadas. Tudo era a sua fantasia, pois nunca havia entrado no Velódromo de Hiver. Havia imaginado, todavia, que aquele lugar deveria ser a pista dos sonhos. Da escola ao mercado, todos falavam dela. E ele estava convencido disso, principalmente depois daquelas duas vezes em que havia passado na frente, sem jamais ter o privilegio de entrar.
A primeira vez foi por acaso, com seu pai num fim de tarde de domingo, caminhando pelo Boulevard de Grenelle ficou intrigado com o som da multidão que se sentia à distância. Em seguida, com seu pai chegou à frente do grande edifício, vizinho à Torre Eiffel, aonde viu os cartazes com ciclistas desenhados, um ele reconheceu. Era ele, o seu herói, aquele que todos chamavam por Toto: alto e potente, elegante sobre a bicicleta. Lá dentro, a torcida estava em êxtase, escutavam-se os gritos da multidão. “Vamos, vamos andando que a tia Dalila nos espera”. Daniel tentou faze-lo mudar de ideia puxando-lhe o casaco, ali na frente daquele pôster colorido com todos os ciclistas desenhados: “Vamos embora, já te disse que aquele não é lugar para você! Não permitem a entrada de crianças, está cheio de pessoas ruins e donas de pouca reputação, é um lugar ruim “.
Era um antro de perdição, dizia o pai. Mas, o fato de que aquele fosse um lugar proibido aumentava a sua magia. O Vel d’Hiv era o ponto de encontro de uma Paris de celebridades e bon vivant’s. Os pistard’s (ndt.: pisteiros) eram verdadeiras estrelas, o seu show e os seus desafios sobre o parquet reuniam não só os apaixonados, mas também e principalmente ricos apostadores, belas mulheres, delinquentes e prostitutas de alta classe. Comparável aos teatros da Belle Epoque.
A segunda vez que viu o Velódromo d’Hiv de fora , Daniel guardava o momento com muito mais orgulho, e foi pouco depois daquele domingo…. Pois havia descoberto que sua irmã Abigail tinha em sua caixinha de segredos uma foto de Toto. Louis Gerardin, conhecido como Toto, além de ciclista era um belo homem. Não era apenas espetacular em seus desafios contra Michard, Faucheux e Archambaud, mas também agradava o público feminino. Talvez um pouco mais, era o mais amado pelas garotas, graças acima de tudo por seus olhar apaixonante. Claro que após a descoberta daquela foto, Daniel tentou convencer Abigail a que fugissem em segredo para levar adiante um outro plano secreto: voltar ao Boulevard de Grenelle e esperar que do Vel d’Hiv saísse após o seu treino da tarde , ele mesmo, o belo Toto. Não precisou de muito mais conversa para convencer sua irmã Abigail, oito anos mais velha que Daniel, a garota conhecia já muito bem as ruas de Paris.
Diante dos portões do Vel d’Hiv tiveram de esperar talvez uma hora , ou quem sabe um pouco mais, para ver entrar ou sair qualquer pessoa. Era uma quinta-feira, não havia corridas, os operários trabalhavam na preparação da decoração para o final de semana. Kermesse, golpe de rins (ndt.: ação de todo sprinter na finalização/arremate de um sprint ) e champagne. De repente sai um pequeno grupo de homens que não eram os trabalhadores, mas ciclistas com suas bicicletas nas costas: eram eles, os grandes protagonistas do Velódromo de Hiv. Entre aqueles jovens, rapidamente Abigail o reconheceu: o belo Toto usava um casaco cinza e sapatos de verniz, enquanto caminha pela calçada fazendo deslizar ao seu lado uma bicicleta que ele segurava com uma mão sobre o guidão. Toto era muito elegante, não só pela maneira que se vestia, mas também em seus movimentos.
Daniel percebeu que Abigail tremia de emoção, incapaz de qualquer coisa a poucos metros do ciclista. “Vamos, vamos” ele disse. Arrancou de suas mãos a foto de Gerardin e sem um pingo de vergonha ou timidez correu ao encontro do pisteiro que aos poucos se distanciava do velódromo. Um garotinho que corria de encontro ao ciclista. Toto se deu conta e entendeu. Esperou e fez um sinal para que lhe desse a foto: “Como você se chama?” perguntou ao garoto , enquanto tirava de seu bolso uma maravilhosa caneta tinteiro, uma raridade absoluta que Daniel só havia visto no consultório do doutor Chany, um amigo do seu pai.
“Eu sou Daniel, tenho seis anos e vou ser um ciclista como você. Mas a foto é da minha irmã Abigail”, o garoto da meia volta e aponta para a irmã que olhava a distância. Imóvel, sorridente e vermelha de emoção. “ Para Abigail…” e assina.
“Meu caro Daniel, eu te espero aqui no velódromo, quando você se tornar um ciclista faremos um belo sprint. E traga também a sua irmã!” e Toto se distanciou levantando o braço para cumprimentar a garota.
Não parecia real, aquilo parecia um sonho. Daquele dia, Daniel guardava um única certeza: ele seria um ciclista e não via a hora de poder ter a sua bicicleta. A foto di Toto, retornou para a caixa de segredos de Abiagil. Para ele, aquele autografo não tinha maior importância, porque Toto havia lhe dado muito mais: um compromisso. Na verdade, estava lançado um desafio.
Passaram-se muitos meses, talvez mais de um ano daquelas duas vezes. Fazia muito calor naquela noite em casa, e o verão sufocava os mais velhos . Daniel tinha intuição, enquanto observava os rostos preocupados, cansados e tensos de seus pais. Que não falavam até que veio a ordem: “Já para a cama, chega de correr em volta da mesa. Você esta suando e faz muito barulho. Silêncio e a dormir”. Uma última volta na pista para dizer adeus às sombras da multidão e um “tudo bem” antes de cair para dentro do quarto. No entanto, o olhar preocupado do pais, ficou em seus pensamentos naquela noite.
“Acorda Daniel, apresse-se! Vamos embora”. Daniel sente o sopro de mãe perto de seu ouvido, mas não era de manhã, ainda parecia noite. Saltou para ficar de pé, entre o sono e o despertar, bem no meio dos seus sonhos. E percebeu que em sua casa havia muitas pessoas; na cozinha estava o pai enchendo uma sacola: dois pães e uma garrafa d’água. Com ele havia três policiais. Mas o que fazia a policia em sua casa?
Rapidamente Daniel se viu descendo as escadas correndo de mãos dadas com Abigail, diante dos policias e da mãe e do pai que tinham estampado no rosto a mesma cara de preocupação da noite anterior. O que estava acontecendo? Porque a policia? Para onde estão nos levando? Daniel tinha medo, mas não se atrevia a dizer sequer uma palavra. Permanecia em silêncio, esperando que aquilo fosse um terrível pesadelo.
Foram colocados em um ônibus lotado, os policias ficaram sobre a calçada, enquanto o ônibus partia. Paris ainda madrugava, as ruas estavam desertas, o calor havia diminuído graças a um vento quase primaveril.
Daniel permanecia em silencio, mas o medo desapareceu de repente. O pesadelo sumiu assim que o ônibus diminuiu a velocidade e parou diante do Vel d’Hiv, sobre as calçadas havia policias por todas as partes, mas lá no fundo as portas do velódromo estavam abertas!
Que sonho mais estranho. Do medo se reencontrar, sim , ali no velódromo dos sonhos. Ele não entendia como e porque, mas era ali mesmo, estava entrando ali. Com papai e mamãe preocupados: Ah, é claro porque estavam preocupados! Pelos delinquentes e prostitutas. “Papai não tenha medo, lá dentro esta o Toto que me conhece. Podemos ficar seguros que não vai acontecer nada”. Olhou para Abigail e viu que tremia da mesma maneira como daquela vez em que conheceram Toto, mas não sorria; “Não precisa ter medo!” teve vontade de gritar. No entanto, por temor a todos aqueles policiais não disse nada.
As portas do Vel d’Hiv estavam às suas costas…Maravilha! Ao se encontrar no meio da pista Daniel ficou boquiaberto por vários minutos. O anel de madeira ao seu redor, as arquibancadas os camarotes: a multidão estava por todo lugar. Havia também o cheiro de excremento e suor, sensações desagradáveis, mas Daniel não sentia absolutamente nada. Lá estava na pista, na pista de madeira. E gente que não parava de chegar, a multidão crescia: “Mas quando vai começar? Quando chegam os ciclsitas? O pai não respondia, permanecia em silencio, cabisbaixo .
Era pleno dia, o calor insuportável e ainda o cheiro de merda só aumentava, mas Daniel parecia estar em um dia de primavera: sozinho à espera, uma longa espera no meio daquela pista, que o esgotava, mas não desistia e continuava a pensar: “Daqui a pouco chega Toto e com a sua bici dará toda uma volta e eu vou cumprimenta-lo. E quem sabe eu possa testar aquela bici que eu nunca tive”.
Espera infinita, tanto que Daniel não conseguia mais ficar sentado e quieto. A noite havia chegado, não havia comido nem um pedaço de pão, mas sentia ter a energia suficiente para aquele desafio, aquele sprint sonhado por meses. As sombras da multidão e a multidão de verdade estavam ali, e se encontrou correndo sobre a pista de madeira, com seu calçado de solado de cordas em posição de ciclista. Curvado para frente como Toto, dentro de um grupo de crianças. Todos ao seu redor com rostos desesperados, mas aquelas crianlas corriam e imaginavam pedalar bicicletas maravilhosas com o vento no rosto e a adrenalina de sprinter. Daniel corria na curva que se projetava em direção às arquibancadas, corria e era feliz.
Daniel correu na curva subindo abruptamente em direção às arquibancadas. Em seus pensamentos uma vontade louca de gritar, mas ele mantinha o sonho em seu coração: “Que lindo presente. Papai finalmente se convenceu. E daqui a pouco chega Toto e te fará sorrir, porque Toto fará todo mundo sonhar. E as garotas ficarão coradas e vencerá o seu sprint. E eu, talvez tentarei superá-lo”.
Da corrida aos braços de sua mão, em poucas horas exausto e sequestrado pelo sono. Daniel adormeceu com seu rostinho branco todo cheio de alegria, dormia sorridente. Não acordou, e não queria acordar daquele sonho, o dia mais feliz dentro do velódromo dos sonhos. Certo que ao acordar no dia seguinte encontraria Toto e os demais ciclistas aguardando por ele. O sono profundo e maravilhoso das crianças o mantém à distância do desespero da manhã seguinte. Daniel acordaria em um trem lotado com destino desconhecido. “Nós vamos parar em outro velódromo?”. Abigail cruzou o recinto cercado de arame farpado com uma foto autografada escondida no vestido. Daniel com a felicidade dos seus pensamentos, dentro de um mundo de ciclistas, animado pela fantasia.
O VELODROMO DOS SONHOS, O LUGAR DA VERGONHA
O velódromo de inverno de Paris, foi construído por Henri Desgrange , editor do L’Auto que viria a se tornar o organizador do Tour de France, foi palco de grandes disputas na pista por quase 50 anos. De 1909 a 1959 quando foi demolido, após ser danificado por um incêndio. Estava localizado nas proximidades da Torre Eiffel.
Aquela que era a pista de maior relevância com a melhor frequência de ciclistas e de público tornou-se o lugar da vergonha: o Vel d’Hiv fica na lembrança dos franceses acima de tudo pela “rafle” (ou razia: termo atribuído aos ataques e onda de prisões organizadas por policiais franceses e alemães durante a Segunda Guerra Mundial contra os judeus e também em operações contra a Resistência. Ação policial aonde uma determinada população ou grupo de pessoas são detidas)
A Razia do Velódromo de Inverno – en francês le rafle du Vélodrome d’Hiver, mais conhecida como rafle du Vel’ d’Hiv – ocorreu em 16 e 17 de junho de 1942, em Paris, após um acordo entre a Gestapo e autoridades francesas; foi o maior aprisionamento de massa de judeus realizado na França durante a Segunda Guerra Mundial.
Foram presos no Velódrome d’Hiver cerca de 13.152 judeus, na maioria mulheres e crianças sem água, comida ou banheiros sendo depois transferidos para o campo de deportação de Drancy, próximo a Paris. Mais de 4000 eram crianças
Desse campo eles seriam deportados diretamente para Auschwitz onde deveriam trabalhar e depois morrer em câmaras de gás. Em Drancy, nas chamadas antecâmaras, as crianças foram separadas de seus pais e depois de suas mães. Chegando em Auschwitz os homens e as mulheres eram levados para trabalhar, enquanto as crianças eram levadas diretamente para as câmaras de gás. Muitas fugiram ainda em Paris e se abrigaram em casas de fazendeiros da região. O povo parisiense diz que não gosta de se lembrar desse acontecimento por ser um momento triste na história da França, afinal os judeus foram presos e deportados pela Polícia Francesa
Louis Gerardin, Toto
Foi um pistard francês campeão mundial amador de velocidade em 1930. Naquela época foi um dos grandes protagonistas das provas de 6 dias, uma verdadeira estrela do Vel d’Hiv aonde inflamaca o publico desafiando outros campeões da época como Lucien Michard e Lucien Faucheux.
Para o público era Toto, amado pelas mulheres, Louis Gerardin, ficou famoso no pós-guerra por sua história de amor com a cantora francesa Edith Piaf. Ao encerrar sua carreira nas pistas Girard se dedicou à preparação de ciclistas, foi técnico de Daniel Morelon (3x campeão olímpico / 7x campeão mundial)
Sobre trágico evento Gilbert Becaud dedicou esta canção com a voz de Annie Cordy:
https://youtu.be/CJMTSHDyBPs
A história foi levada para as telas sob o nome de La Rafle ou The Round Up ou Amor e Ódio – com Jean Reno / Melanie Laurent e Gad Elmaleh
https://youtu.be/11ddj7YdKeU