Em uma entrevista arrasadora ao jornalista italiano Tony Lo Schiavo, na edição do mês de maio da revista italiana BICISPORT, Bernard Hinault – Le Patron – solta a voz, bate forte no ciclismo moderno, questiona a sobrevivência do esporte da forma chata e previsível que vem sendo disputado. O primeiro passo para a mudança, segundo ele, seria o fim do ProTour/World Tour. Acompanhe esta entrevista inédita, curta cada linha e pense um pouco no quem vem acontecendo com o ciclismo e o que os fãs acompanham a cada etapa das grandes voltas….
Seu currículo é inquestionável, foram 12 temporadas como profissional, 216 vitórias, um título Mundial (Sallanches/1980). Em sua carreira venceu 5 Tour’s de France (78/79/81/82/85), 3 Giros d’Italia (80/82/85) e 2 Vueltas a España (78/83), além disso ganhou a Paris-Roubaix, duas Liegi-Bastogne-Liegi e dois Giros da Lombardia. Por vários alguns anos Bernard Hinauld, também foi o verdadeiro Patron do Tour de France, até que se aposentou no final do ano passado.
De temperamento forte, o Texugo como também era conhecido no pelotão, nunca foi de levar desaforo pra casa e aos 63 anos ainda é um homem que tem muito a falar e influenciar o ciclismo. Em sua última visita à Itàlia, à Cervia, na Emilia Romagna, no final do mês de março, aonde foi participar de ações promocionais ligadas a uma Gran Fondo ficou surpreso com sua popularidade junto ao público mais jovem: “Em todo lugar me reconhecem e me pedem para tirar uma foto. Não acreditava de ser ainda hoje assim tão popular” , comentou mostrando a realidade de um país e de uma região aonde o ciclismo faz parte da cultura popular. Foi entre uma pedalada e outra que ele conversou com o jornalista Tony lo Schiavo, da revista BICISPORT e mostrou sua posição sobre o esporte. Talvez em um momento muito oportuno, com a disputa da primeira Grande Volta da temporada, o que pode ser uma bela provocação que pode levar muitos fãs a refletirem melhor sobre o esporte.
Hinault não é de meias palavras e em pouco tempo expõem sua opinião, revirando de cima a baixo o ciclismo como ele é hoje. Um ciclismo que ele deixa claro que não o motiva, não apaixona, e questiona se dentro de trinta anos (lembrando que ele parou de correr em 1986) , os atuais campeões terão a mesma satisfação que ele de serem reconhecidos fora da França. Para deixar bem claro o seu tempo e como é o seu ciclismo ele declarou: “Criatividade, estratégia, coragem, diversão , improvisação, agressividade. Este é o meu ciclismo” e complementando o pensamento, emendou: “Esse foi o ciclismo que construiu a sua lenda. Hoje vejo muitas vezes um ciclismo chato, previsível, longe do seu público”. Para dar maior poder à sua argumentação ainda apresentou dados da tevê francesa: “Basta dizer que uma pesquisa revelou que as pessoas seguem o Tour de France na tevê mais pela beleza das paisagens que pela competição. Este ciclismo tem algum futuro?”, talvez seja um exagero de quem viveu de dentro a organização da mais importante volta ciclística, mas nos conduz a um pensamento: será que o público jovem fica mesmo por horas diante da tevê para ver montanhas e longas plantações?
Fica claro que o ciclismo de Hinault é bem diferente do que vemos hoje na televisão, nos computadores e smartphones é algo que está muito longe da história desportiva e para ele o principal culpado disso tudo foi o surgimento do ProTour, atual World Tour, mas que ele ao longo de toda a entrevista, o Texugo insiste em chamar pela denominação que existiu entre 2005 e 2010, um pequeno detalhe que pouco muda as impactantes declarações e porque o atual sistema é, segundo ele, o principal motivo que está desgastando e conduzindo o esporte a uma encruzilhada . “O ProTour poderá ser a cova do ciclismo e quanto antes se saia desta armadilha infernal será melhor para o público, para os ciclistas, para equipes e para os organizadores” , vaticinou.
Não são apenas criticas de quem ainda vivencia o esporte, Hinault analisa profundamente o que ele entende como os males do ciclismo, apontando diretamente ao movimento oficial que reduziu o ciclismo a uma equação econômico-financeira. “O que vale é o dinheiro. Trata-se de uma caçada ao dinheiro. E esquecem que o ciclismo é um dos esportes que deve ser um espetáculo”.
Ao ser questionado do porque do dinheiro ter se tornado tão importante, ele aponta para o sistema que rege as equipes profissionais. “A admissão ao ProTour (NdT.: atual World Tour) é feita em base a critérios financeiros e econômicos; e todos os critérios de avaliação estão relacionados ou condicionados à capacidade econômica. Se você tem dinheiro pode fazer uma equipe ProTour. Se você tem dinheiro pode organizar uma corrida com pontuação para a UCI, a Roubaix ou a Sanremo. É uma loucura! Em vez disso devemos considerar os resultados esportivos: façamos um esporte, não apenas business”.
Pode parecer estranho o raciocínio do Patron, aonde os exageros do mundo business não são vistos com bons olhos. A proposta de Hinault, não é nenhuma novidade e aponta a um sistema de promoção e rebaixamento baseado nos resultados esportivos, nas classificações aonde a equipe seria mais valorizada e aonde a combatividade sempre é premiada. “…é preciso eliminar a pontuação ao ciclista. A pontuação tem que ir para as equipes. A classificação deve pertencer à equipe não ao ciclista e ao final da temporada as melhores equipes são promovidas de categoria e as piores seriam rebaixadas. Se todos os esportes tem esse mecanismo, deve ter uma lógica! As classificações individuais, me parece sejam seis…São desconhecidas, mas pesam na gestão da corrida por parte dos ciclistas que completam a prova apenas perseguindo uma posição e sua relativa pontuação, ao invés de pensar na vitória da corrida em primeira pessoa ou com o seu capitão”.
Ao ser questionado de que as equipes com maior poder econômico continuariam sendo sempre as favoritas, aponta para, dentro do seu sistema de competições, uma mudança tática: “Sim, mas os pontos atribuídos às equipes criam um mecanismo de gestão da corrida completamente diferente. As equipes serão sempre forçadas a procurar sempre o melhor resultado para melhorar a sua classificação e com isso tentarão levar seus melhores homens. Os ciclistas mais fortes serão ‘estimulados’ a caçar à vitória por que a equipe precisa dos pontos; os gregários se preocuparão em ajudar o seu capitão ao invés de terminar uma corrida anônima beliscando algum pontinho. Lembro-me dos tempos do SuperPrestige (NdT.: SuperPrestige Internacional era patrocinado pela indústria de bebibas Pernod e premiava o melhor ciclista da temporada – foi disputado de 1957 a 1987 – Hinault levou 4 prêmios 79/80/81/82) que duelei pelos pontos com o Moser até o Giro da Lombardia! (NdT.: prova que fechava a temporada). Resumindo poderia mudar muito a forma de como são administrados os ciclistas e as corridas. Não acredito que as pessoas fiquem exaltadas vendo um grupo compacto que espera até a ultima meia hora para abrir a corrida”.
Seria uma revolução conceitual e que poderia provocar uma mudança total de comportamento, mas as ideias não se limitam à classificação, mas também à forma de como cada organizador montaria a lista de suas equipes convidadas, o que seria praticamente acabar com o sistema UCI World Tour. “Do ProTour não há nada para ser salvo. Porquê um organizador é obrigado a convidar uma equipe em base a uma classificação e não segundo sua própria avaliação?” foi taxativo. Mas ao ser indagado de que mesmo assim os organizadores de corridas seriam obrigados a convidar as equipes mais fortes, prontamente ele desconstruiu um mito, com uma constatação no atual sistema de corridas: “ Não é verdade. Há equipes muito fortes nas Grandes Voltas que são obrigadas a correr as clássicas com ciclistas de segundo escalão e vice-versa. Há equipes que não tem nenhum interesse em disputar certas corridas, mas são obrigadas a participar, talvez tomando o lugar de equipes mais motivadas. São os organizadores que deveriam ter o direito a convidar equipes que não podem ser chamadas , porque estes não tem o direito de escolher a quem convidar para as suas corridas . Equipes que em base ao seu programa montam formações de segundo plano não honrando a corrida que são obrigados a disputar. Que lógica que há nisso?”.
Partindo desse pensamento, o jornalista da revista italiana BICISPORT, provocou: -As equipes sempre pediram regras claras para os convites, não se pode pensar em começar uma temporada sem que se saibam quais as corridas que devem ser disputadas. – Sem muitos rodeios a resposta foi um tiro certeiro: “O critério não pode ser a conta no banco. O ProTour também inchou de forma desproporcional os budget/orçamentos das equipes. Trinta ciclistas, muitas vezes são duas a três pessoas por ciclista, uma frota de veículos. Cada ano é mais difícil sobreviver. Que senso há nisso tudo?”
Em resumo, para Hinault o sistema da UCIWorldTour penalizou os organizadores – uma verdade que também contribuiu para acabar ou reduzir a importância de certas corridas – e tornou insustentável o custo das equipes – outra realidade que se percebe ano após ano com o desespero de muitos diretores saindo à caça de patrocinadores e no âmbito desportivo tornou as corridas frequentemente chatas. Como acontece isso? Hinault responde com um exemplo que está aos olhos do grande público da modalidade: “Hoje a Sky, devido ao seu orçamento , com um ciclista vence a corrida e com os outros a neutraliza. O orçamento lhe garante a permanência no ProTour. Com um sistema diferente, a Sky não poderia se dar ao luxo de neutralizar as corridas porque aqueles ciclistas servem para tentar vencer outras. E as outras equipes serão forçadas a inventar uma estratégia. O mecanismo aberto torna tudo mais aberto”.
Para reduzir custos, nas grandes Voltas já se cogita a diminuição do número de ciclistas por equipe, o que poderia tornar mais difícil esse controle e a neutralização obsessiva de etapas. Porém o ex-campeão francês aponta as próprias equipes como resistentes à mudança.
Hinault em alguns momentos mostra-se arisco e volta-se sempre, quando questionado, à maneira de como se comportam os ciclistas em competição e ao poder exagerado dado às equipes quando se fala do circuito de provas apoiado por estas que ignora o sistema oficial da UCI: “As equipes fazem aquilo que lhes é permitido. Com o dinheiro que elas têm conquistaram muito poder. Comigo isso não seria possível. Eu acredito que os campeões devem mostrar para o que vieram, devem defender o seu esporte. Ao invés disso em alguns momentos me parecem uns robôs telecomandados…..” , claro que não poderia faltar mais uma provocação e em sua resposta trouxe à tona o tema radinho e fones de ouvido: “É uma outra loucura. O ProTour despersonalizou os ciclistas. Eles também são esmagados pelo peso do dinheiro. Com o contrato terminam vendendo até a alma”.
E mais uma vez , a culpa seria do World Tour? Hinault não tem duvidas disso e atira contra o sistema, e contras as equipes: “Mas é claro! O ProTour os violentou. São jogados de um lado a outro. Da China para a América, sem algum respeito às suas exigências técnicas ou pessoais. Retirou de fato, a possibilidade de que cada um faça um programa de corridas porque são as equipes a decidir quem e aonde se deve ir. Isso não me agrada. Porém, o que mais importa é que este ciclismo não agrada ao publico que fica desorientado ao ver, talvez, ciclistas italianos na Califórnia, durante o Giro d’Italia”.
É hora de tentar mudar um pouco o rumo da entrevista, afinal na lógica do ex-campeão o ProTour seria o grande problema , então passando para o lado técnico e as mudanças pelas quais os esportistas passaram nos últimos anos foi perguntado se ele não acredita que certos ciclistas e seu físicos acabaram transformando um esporte de resistência em um esporte de potência; Hinault saiu-se com um comparativo de épocas: “ Não acredito nisso porque as médias do meu tempo não estão longe das médias atuais . É o controle da corrida que matou o espetáculo. E a falta de estratégia que termina banalizando a corrida.”.
Pode parecer que Hinault não veja nada de positivo no ciclismo dos tempos modernos, mas ao ser perguntado se haveria alguma coisa que ele gosta do ciclismo atual, não teve dúvidas em apontar nomes que são quase unanimidade entre os apreciadores do esporte: “Me entusiasma o Contador que chega em segundo depois de tentar quebrar a banca na Paris-Nice. Gosto do Sagan que ganha e perde tanto, mas sempre arrisca. Gosto da coragem do Philippe Gilbert. Vockler. Talvez nem todos sejam uns campeoníssimos, mas tem o temperamento que é o que o povo pede de um ciclista”. O italiano Vincenzo Nibali também entra nessa lista: “Claro que o Nibali. Venceu um Tour de France mostrando coragem e determinação. As pessoas amam estes dotes”.
Avaliando a tendência tão em moda para as grandes equipes que fazem longos períodos de preparação em altitude, foi mais uma vez taxativo: “É mais uma loucura do ProTour. O direito adquirido permite manter os campeões longe das corridas. É errado. Só é ciclista porque participa das corridas. É essa sua atividade. O campeão é aquele que vence. O ciclista é aquele que se apresenta na largada e procura de todos os modos levar para casa o resultado. Tem outra coisa, eu me divertia mais numa corrida que treinando. Isso também me leva a dizer que atualmente os ciclistas são um pouco telecomandados.”
Hinault é um daqueles que acreditam que os regulamentos, que as regras do esporte devam ter uma maior participação dos ciclistas: “Acredito que o ciclista deveria ter um poder de decisão muito maior sobre as escolhas. Sejam das instituições e das equipes. Se necessário também contestando as regras que vem da UCI e dos managers. Por exemplo, eu acho inaceitável o calendário da UCI”.
O calendário desportivo de Hinault para o pelotão profissional seria assim: “Até março se corre na Austrália, Ásia e África . Do meio de março até 15 de setembro se corre na Europa, daí até o final do ano se correria na América. É inaceitável que os ciclistas sejam jogados de um canto a outro do Mundo frequentemente para disputar corridas de muito pouco valor técnico, sem algum respeito. Bastaria que se pusessem de acordo uns dez ciclistas mais representativos.”. Impossível não questioná-lo: Você realmente acredita que eliminando o ProTour cancelaria como por encanto todos os problemas deste esporte? “–Com certeza restituiria o ciclismo à sua história”.
Sobre o futuro da entidade máxima do esporte, Hinault ao longo da entrevista, deixa claro em seu posicionamento que não compartilha com os projetos das gestões McQuaid e Cookson, apostando em uma mudança na próxima eleição. O seu compatriota Lappartient, presidente da UEC (União Europeia de Ciclismo) e provável candidato à presidência da UCI, em uma reunião em Bruxellas apresentou ideias muito parecidas às de Hinault; muita gente do meio começa a simpatizar, principalmente no velho continente com as ideias do dirigente. A pergunta final foi se Bernard Hinault acredita que Lappartient será o homem que poderá conseguir realizar essas mudanças? “Antes de tudo é preciso ver se ele consegue se eleger. Coisa que eu espero. Mas é preciso agir, pois de palavras já estamos cansados”. Uma resposta que deixava duvidas no ar e que poderia dar múltiplas interpretações e que gerou um outro questionamento: Mas a quem você se refere? “Por exemplo à ASO. São pelo menos dois anos que eles anunciam a retirada de todas as suas corridas do ProTour (NdT: World Tour) mas até então não o fizeram. Espero que o façam em breve e que esta estrada seja seguida pelos organizadores do Giro d’Italia. O ProTour aproveitou-se das corridas históricas para construir um modelo de ciclismo estranho à sua história. Talvez seja um velho nostálgico, mas vejo que o grande público do ciclismo pena como eu…..”
Entrevista ao jornalista: Tony Lo Schiavo da revista BICISPORT
Tradução e adaptação: George Panara
Parabens Parana pela tradução da intrevista desse icone do ciclismo mundial..
Muito obrigado Vasconcellos,