HACKERS NO PELOTÃO DO TOUR DE FRANCE

É real e está acontecendo:  ladrões de dados rondam o pelotão do Tour de France e informações dos ciclistas podem ser adquiridas por adversários. Essa história começou com a queda de Remco Evenepoel no Giro da Lombardia e um pacotinho disfarçadamente retirado do bolso de sua camisa por seu técnico. Quem vem revelando tudo isso é o jornalista italiano Marco Bonarrigo, e se o ciclismo está mudando, muito tem relação com tecnologia da informação, transferência e comercialização de dados

Tour de France, pelotão cada vez mais controlado – foto: A.S.O. /Alex Broadway

Os boatos já corriam na boca de algumas pessoas que orbitam no meio mas não fazem parte dos esquemas oficiais do esporte, porém só foi escancarado publicamente quando, durante a última edição do Giro da Lombardia, disputado duas semana antes das largada do Tour de France, o diretor esportivo do belga Remco Evenepoel, o italiano Davide Bramati retirou um pacotinho do bolso traseiro da camisa do ciclista, e sorrateiramente o enfiou no bolso da sua calça. Aquilo para muitos era algo muito estranho e nada lembrava as barrinhas de cereais ou géis repositores usados pelo ciclista

 Alguns dias depois revelação veio nas páginas do periódico italiano Corriere della Sera, em matéria de um dos jornalistas que mais buscam fraudes no ciclismo, Marco Bonarrigo, o mesmo que  em 2016 foi um dos que apontou o uso de motorzinhos em algumas bicicletas do pelotão.

A tecnologia ao alcance de quem pode pagar. Um modem 4G conectado ao computador/ciclocomputador montado no guidão e a alguns sensores aplicados no corpo do ciclista e na bicicleta transmitem ao carro do diretor esportivo uma série de dados. Muito provavelmente, assim como na F1 toda essa informação pode ser repassada para um analista externo este pode avaliar e ter os registros, naquele período do esforço do ciclista. O único meio de transmissão entre ciclista e equipe autorizado pela UCI – União Ciclista Internacional – é a rádio de duas vias onde o ciclista e seu diretor esportivo podem conversar e trocar informações – tudo o demais é proibido por regulamento, afinal um sistema de monitoramento daria a possibilidade ao diretor esportivo ‘teleguiar’ seus pupilos alterando completamente as estratégias naturais da competição.

Pelotão monitorado? Suspeitas de troca de informações entre ciclista e equipe vai muito além do permitido pelas regras da UCI – foto: A.S.O./Pauline Ballet

Os diretores da Deceuninck-Quick Step são veementes em desmentir que Remco carregava um modem, tratava-se, segundo Bramati, de uma pequena garrafinha levando algo como um energético, isso foi o que ele declarou pela segunda vez. Porém, em meio à disputa e ao acidente de Remco o diretor fez uma declaração à uma equipe da Rai, que para alguns pode ser considerada uma ‘quase’ confissão: “Percebemos que seus dados não chegavam mais e entendemos que algo havia acontecido”, estranho, afinal a comunicação é apenas por rádio não existindo comunicação de dados entre ciclista e equipe, a partir daí a UCI resolveu começar a investigar e as suspeitas apontam para as equipes de maiores orçamentos, e onde os escrúpulos foram postos de lado já faz algum tempo, utilizando o rastreamento da posição e a condição física do ciclista, inclusive até de adversários, com sistemas proibidos e que garantiriam grande vantagem na hora de movimentar os ciclistas na estrada.

O jornalista italiano Marco Bonarrigo, relata uma conversa durante a primeira semana do Tour de France com um inspetor que preferiu não ser identificado: “Entrando no grupo com um celular na mão, captei sinais de wifi ‘descobertos’”. A conversa sugere que estes sinais teriam origem em um modem 4G também conhecido em alguns países da Europa por modem sabonete ou saboneteira pelo seu formato e com preços que se encaixam no bolso de praticamente a maioria dos cidadãos europeus.  A partir dele, como já citamos, é possível ter a posição dos ciclistas e inclusive dados fisiológicos como as ‘curvas de potência’ dos ciclistas monitorados.

Com esses dados é possível ter praticamente uma etapa em mãos, sob certo controle ou salvar a equipe de qualquer desastre fisiológico ou de desempenho pois membros do staff recebem e monitoram os dados que apontam o momento do ciclista, a sua potência ou as suas fragilidades, o momento em que a energia está no limite ou até mantê-lo motivado para seguir pedalando em um ritmo elevado por mais tempo, para isso basta, desde a viatura fazer a gestão do ciclista, se é preciso que aguente um pouco mais, passe a mensagem por rádio para que ele diminua o ritmo em 10 watts, e segue o movimento.

Toda essa ação é proibida, e tem a lógica. Com essa informações em mãos, é possível controlar à distância uma corrida e mudar a tática de uma equipe.  Já se fala no trabalho de hackers no pelotão, um pirata digital dos bons poderia capturar os dados de uma equipe adversária e repassa-los para seus gregários ou capitão e comandar um ataque até minar as energias do oponente. Isso vem acabando definitivamente com qualquer ação intuitiva ou de leitura tradicional de uma corrida, o ciclismo como muitos conheceram, definitivamente roda para seu fim.

foto: Velon Ltd

Porém nessa conversa de modem e de transferência de dados proibidos há uma pegadinha montada pela própria UCI e a Velon, uma empresa criada em 2014 e que tem como parceiros ou sócias as 11  e mais endinheiradas das 18 equipes do pelotão World Tour. A Velon, em sintonia com a UCI é a empresa que instala, debaixo do selim de cada ciclista em competição, um transponder que coleta e transmite dados como localização, velocidade, frequência cardíaca, potencia e também algumas imagens on board.

Em cada etapa ou competição disputada, dois técnicos da Velon instalam em cada bicicleta os sensores, nem todos são ativos porém para manter a igualdade de disputa esses inativos funcionam como lastro para equiparar os pesos daqueles que carregam o transponder que envia os dados à geradora de imagens para a tevê e ao portal mantido pela empresa, tudo isso para garantir maior informação ao público.

Toda essa informação, com dados importantíssimos sobre desempenho de boa parte do pelotão está sob proteção e não podem ser gravados ou acessados por terceiros.   No Tour de France e em outras provas da ASO (organizadora da grande volta francesa e de clássicas do ciclismo profissional) outra empresa parceira da organização é a NTT, antiga Dimension Data que também trabalha na coleta de dados, mas por contrato estão limitados à velocidade,  posicionamento dos ciclistas e movimentação do pelotão e usa algoritmos para fazer previsões sobre prováveis resultados da corrida

Segundo presidente da UCI, o francês David Lappartient “Na corrida os diretores esportivos só podem receber a posição do seu ciclista. Qualquer outra transferência de dados está proibida, e caso descoberto será punido”.

Para o jornalista do Corriere della Sera, um dos mais respeitados técnicos do ciclismo internacional declarou: “ É engraçado que a UCI  anuncie investigações e ameace com sanções contra  quem intercepta dados sigilosos dos ciclistas na corrida: os dados já estão em circulação, você só precisa pagar”.

Ainda segundo esse técnico, de nome não revelado: “O jogo consiste em você combinar na transmissão os dados de posicionamento com aqueles pessoais e enviá-los á uma central técnica da equipe que opta por esse serviço adicional, e muitas vezes isso acontece longe da prova. Não sei quem são esses ‘facilitadores’, se é gente de dentro ou de fora, mas sei que a pratica existe e que também é possível ter os dados dos adversários . Ou a Federação (ndr.: UCI) se mexe ou se resigna e passa a aceitar essa prática”.

Provas do pelotão World Tour estão cada vez mais controladas desde os carros dos diretores esportivos, foto: A.S.O./Pauline Ballet

Essa declaração escancara a realidade do novo ciclismo, com tudo isso exposto praticamente o pacotinho do Evenepoel perde relevância, e basta prestar um pouquinho de atenção para perceber o que está acontecendo no pelotão. Nenhuma equipe é apanhada de surpresa, as grandes equipes destroem as fugas com precisão. Os gregários que no ciclismo atual já se destacavam no trabalho, subindo até o limite das altas montanhas puxando com uma agressividade cada vez maior, agora são ativados no tempo certo com doses exatas de energias e em alguns casos sabendo até quando seus adversários estão fraquejando, mesmo que no visual isso não seja perceptível.

Primeiro foram os rádios, depois os medidores de potência ou potenciômetros;   agora temos a tecnologia da informação com a coleta e transmissão e interceptação ou comercialização ilegal de dados pessoais que ao longo dos últimos anos vem transformando como se desenvolvem as provas de ciclismo no mais alto escalão do profissionalismo.  A era romântica definitivamente está sepultada, mas até onde se quer chegar e qual o público que quer se conquistar para manter a modalidade viva e atraente para futuras gerações? A resposta não é simples, mas alguém precisa colocar ordem, a história mostra que por mais de uma vez a sujeira foi empurrada para debaixo do tapete e as mudanças não passaram de maquiagem para agradar o grande público e parte da imprensa.

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