Poucos dias antes da disputa da principal prova dos Campeonatos Mundiais de Ciclismo de Estrada que estão sendo disputados em Doha, no Catar, o eterno Rei Leone, Mario Cipollini apareceu em duas entrevistas e como um leão velho rugiu . Declarou que Nibali errou na escolha dos materiais, que deveria ter feito um acordo com Henao envolvendo dinheiro, não entende a escolha de Pozzatto para integrar a azurra e aponta cinco nomes como favoritos, desde que trabalhem juntos e se o vento não provocar alguma surpresa. Os comentários podem até parecer um tanto excêntricos, mas em tempos do politicamente correto ver um ídolo expor sua opinião e desmascarar bastidores do esporte é algo queno mínimo serve para esquentar os debates
O eterno Rei Leone, Mario Cipollini, mais uma vez rugiu na Toscana e soltou o verbo em duas entrevistas; mais uma vez mostrou-se um tanto excêntrico, mas sincero, defendo posições que ele acredita serem certas e que esquentaram os debates e acenderam o mau humor de muitos. As declarações mais impactantes foram para o jornal francês L’Equipe aonde atirou forte e tornou publica a negociação de vantagens em competições; já para os italianos do TuttoBici foi mais caseiro, mas nem por isso deixou de ser provocativo. Tudo para falar de Nibali e seu desempenho na olimpíada e sobre o próximo Mundial, dedicado aos sprinters, em uma prova que traz a lembrança do título conquistado em 2002, em Zolder na Bélgica.
Cipollini continua a viver do esporte graças à sua marca de bicicletas, não deixou de pedalar ou como ele mesmo declara: “vou em giro e projeto minhas bicicletas com grande paixão: devo dizer que a isso me dá cada vez mais prazer”. Nas conversas sobre o Mundial do Catar e seu circuito extremamente plano, perfeito para as características de Super Mario, ele foi muito sincero: “Seria adequado às minhas características, mas o que eu tinha para dar em bicicleta eu já dei, não tenho este tipo de recordações”
Claramente o Mundial no Catar, não empolga um dos mais importantes velocistas da história do ciclismo : “Correr no deserto em meio a palácios, arranha-céus, todo o business envolvido não me teria estimulado a correr. Eu, de fato corri uma vez em 2005 (NdR.: Tour do Catar) com a Liquigas. Ganhei uma etapa (4ª Al Zubarah>Landmark Doha) batendo o (Tom) Boonen, para dizer que marquei minha passagem por lá. Mas estas corridas, nestas paisagens remotas, no árido, não deixam nenhum rastro. Elas são muito longe, são uma ruptura muito grande com a cena, com os lugares do ciclismo europeu . Eu tinha outros mitos. Lembro-me de Hinault em Sallanches (no Campeonato Mundial em 1980), o ao vivo pela RAI, os comentários do De Zan (Adriano De Zan, lendário comentarista de ciclismo da tevê italiana), a imagem desfocada, a transmissão por satélite toda picotada, corredores quase irreconhecíveis, aquela coisa nublada um tipo nevoeiro úmido … Tudo isso criou fortes emoções. Domingo, pelo contrário, vamos ver todo o pelotão como um fila de peixes coloridos esticados em meio à areia, mas eu não sei se isso será fascinante”.
Avaliando a corrida, tecnicamente, Mario Cipollini não acredita que o calor seja o maior dos problemas, para ele o maior inimigo do pelotão será o vento, e segundo ele os italianos deveriam apostar nele como parceiros: “Nós italianos, devemos torcer pelo vento por que só com uma corrida quebrada poderemos pensar em inventar qualquer coisa. Mas no resto eu vejo tantos corredores que se escondem”.
Com uma dura crítica ao comportamento do pelotão, o ex-ciclista foi taxativo: “Ninguém assume a responsabilidade. Todos os velocistas mais fortes estão fazendo o jogo daqueles que não estão em boas condições. Falta uma equipe de referência, como foi a nossa em Zolder (Mundial de 2002). Ali não havia outra história: a equipe a ser batida era a nossa e o homem que deveria ser controlado era eu”, direto e sem falsa modéstia.
Após assistir pela tevê ao contra-relógios por equipes, Cipollini aponta o alemão Kittel como um dos favoristos: “Não se corre a 54 por hora se o ciclista não está em boas condições. Ele não correu sozinho, mas contribuiu efetivamente para o sucesso da Etixx-Quick Step. E um outro fato que precisamos levar em conta; serão 13 homens da Etixx na corrida no domingo. Se não erro as contas será um belo esquadrão”.
Na lista do italiano não poderiam faltar Tom Boonen: “É experiente e sabe pegar o vento no rosto”, e claro o campeão mundial que defenderá o maillot arco-íris: “E tem o fenômeno de Peter Sagan. Ele pode fazer tudo porque é o melhor. Só é preciso ver se no domingo ele também será o mais forte”.
O campeão mundial de 2002, mostra-se realista com a azurra que estará em Doha: “É uma equipe muito boa. Temos gente experiente e forte, como Quiziato e o Oss, passando por Bennati e Trentin para chegar a Sabatini e Colbrelli. Só não entendi a convocação do Pozzato…”, apesar de um comentário que possa gerar algum desconforto entre seus compatriotas, Cipollini explica seu motivo para questionar o ciclista de 35 anos da Willier Triestina-Southeast: “Pozzato foi um ótimo ciclista, é um rapaz de uma simpatia única e tem toda a minha consideração, mas já teve o seu momento. Não penso que esteja ofendendo se digo que o verdadeiro Pozzato não é o mesmo faz tempo. Digo uma coisa de uma obviedade enorme como reserva eu teria levado um jovem para dar-lhe experiência, é isso”.
Apesar de acreditar na forte seleção italiana, em sua avaliação, Cipollini não descarta que o trem de lançamento italiano, prepare o sprint para outros. E sem modéstia alguma chegou a comentar que essa seleção seria ótima se tivesse um líder como Petacchi ou o próprio Cipollini. E como equipe, é coerente em sua avaliação sobre os dois homens mais fortes da azurra em Doha, Elia Viviani e o velocista da Trek Segrafedo, Giacomo Nizzolo: “São dois ótimos corredores, mas não são uns peso pesados. E com isso não digo nada de excepcional: não temos um vencedor. Se tudo acontecer conforme a lógica estaremos do quinto lugar para trás. Mas as corridas estão para que cada um apresente o seu trabalho. Em quem apostar? Isso é coisa para Davide (NdR.: Cassani – diretor técnico da sel. Italiana, mas os dois se equivalem. Repito, se ventar e a corrida se fragmentar teremos várias armas interessantes: Trentin, Colbrelli e acima de tudo o Nizzolo”, mas o principal ponto para o ex-ciclista é que deste mundial a Itália, que não é favorita, saia da competição com uma imagem coesa, uma imagem de equipe de uma verdadeira Squadra Azurra.
Em mais de uma resposta Cipollini colocou o vento como o fator que poderá provocar uma mudança na corrida, e isso significa que o Mundial não necessariamente vá acabar em um sprint massivo: “Se ventar no domingo, nenhuma equipe poderá controlar a corrida de ponta a ponta. Ela será tão dura como uma etapa de montanha e poderá selecionar um grupo de vinte a vinte cinco homens para a chegada. Kittel, Greipel, Bouhanni, Cavendish terão que se entender, colaborar de forma inteligente e chegar ao consenso de que eles tem que fazer tudo para que termine no sprint e depois que vença o melhor, senão corre-se o risco de que um ‘Van Patapon’ poderá muito bem levar a melhor no dia”.
Ao falar do melhor ciclista da temporada Cipollini foi direto, e aproveitou para alfinetar o ídolo italiano Vincenzo Nibali: “Peter Sagan foi simplesmente fenomenal . Mas se não tivesse caído no Rio, Vincenzo estaria logo atrás do eslovaco, mas certos erros tem um preço”. E qual seria o erro do Tubarão de Messina, para ex-campeão: “Vincenzo correu a prova olímpica com um par de rodas muito bonito e performante, porém diferentes daquelas que ele geralmente usa com a sua equipe. Conheço ambos os produtos, muito bons mas com características muito diversas, que requerem uma condução diferente. Aquela derrapada é fruto de uma menor sensibilidade de condução. Erros acontecem, é humano, mas foi uma pena vê-lo no chão a apenas 6 km da chegada. Vincenzo era o mais forte de todos e naquele momento da corrida mais ninguém lhe tiraria o ouro”.
Além do erro técnico, com a escolha de um par de rodas, que segundo Super Mario, não seria apropriado para aquele traçado particular da Rio2016, Nibali teria cometido um erro ‘tático’ quando se fez a seleção do grupo e ficaram ele, o polonês Rafal Majka e o colombiano Sergio Henao. “Eu entendo ele correr riscos se estivesse sozinho, isso para aumentar a vantagem, mas não se pode fazer isso no meio daquela descida, com arvores, com a estrada escura, úmida e escorregadia. Com o ataque ali, fez o jogo do Van Avermaet. Não havia necessidade disso. Bastava oferecer algum dinheiro para Henao e as coisas estariam arranjadas, ele é um gregário e o ouro olímpico pouco mudaria para ele” e a partir daí a entrevista se torna para muitos um tanto indigesta, afinal Cipollini toca num assunto tabu: a compra de resultados ou de ajuda durante as corridas e com isso também coloca em dúvida sua própria reputação.
“Este tipo de negociações sempre existiram no pelotão. Não se trata de comprar uma vitória, mas uma colaboração com o colega. Por exemplo quando eu fui campeão em Zolder, acertamos a colaboração econômica com outra equipe que não tinha nenhum objetivo, e nós lhe demos um motivo para continuar. Por 100 mil dolares, Henao poderia cuidar de Majka e Nibali teria retornado para a Itália com a medalha de ouro no pescoço. Se comparado com os contratos que ele assinaria depois e com a pacote de dinheiro que viria depois, os 100 mil dólares não eram nada”, uma resposta direta e provocativa.
Essa declaração de Cipollini sobre ‘acordos’ no pelotão resgatou velhas lembranças escondidas na memória, entre elas a citada por Cipollini, em Zolder 2002 quando os italianos foram acusados de terem comprado a colaboração de uma outra seleção, ou o Giro de 2007 quando Gilberto Simone acusou Ivan Basso de ter pedido dinheiro para que ele o deixasse vencer a etapa de Aprica, isso sem falar nos 150 mil euros de Vinokourov para que o russo Kolobnev facilitasse as coisas na Liège-Bastonge-Liège de 2010 e nas suspeitas de que o cazaque também tivesse feito um acordo similar nos Jogos Olímpicos de Londres 2012 quando o colombiano Rigoberto Uran deu uma tremenda bobeada que facilitou o caminho para o ouro de Vinokourov. Sob o sol da Toscana e longe do calor sufocante de Doha, o rei leão rugiu mais uma vez, midiático, provocador, mas ainda mantendo o estilo do Super Mario.
Bello texto!!!