ZOMEGNAN EX-DIRETOR DO GIRO – “PANTANI? FOI UM BODE EXPIATÓRIO, MAS TODOS ANDAVAM DOPADOS”

Ainda sem o pelotão em ação e com notícias que apontam o cancelamento ou adiamento de algumas competições a entrevista do ex-diretor  da Gazzetta dello Sport e do Giro d’Italia de 2004 a 2011, Angelo Zomegnan, reacende a chama dos anos sombrios do ciclismo. A entrevista concedida ao jornalista Giovanni Terzi foi publicada na última segunda-feira (12/1) na coluna dedica ao ciclismo – I Terzisti  – no jornal italiano Libero Quotidiano

Marco era um rapaz simples que escolheu ficar na sua equipe, a Mercatone Uno, não aceitando outras ofertas. Isto não te faz simpático aos olhos de quem quer te fazer trocar de equipe” – A. Zomegnan -foto: Pascal Pavani/Getty Images

A entrevista com um dos homens mais importantes do ciclismo italiano no final do século 20, em um período conhecido por muitos como os mais sombrios do ciclismo não tem rodeios e começa escancarando uma realidade já conhecida por muitos dos que seguem o esporte: naqueles anos o doping corria solto – de mão em mão no pelotão profissional. Nada de novo, mas quando um homem de dentro, envolvido na organização de uma grande volta retoma o discurso, é porque ainda há muita coisa que precisa ser esclarecida.

Angelo Zomegnan não é qualquer um, foi um dos mais influentes jornalistas italianos de ciclismo, sua relação com o esporte começa ainda garoto quando acompanhava um amigo nas competições regionais e trabalhava para ele como assistente nas corridas e fazendo também o trabalho de assessor de imprensa.

Até chegar em 1979 a um dos mais influentes jornais de esportivos do mundo – a Gazzetta dello Sport e em 2004 até 2011 foi o diretor da RCS – simplesmente o homem que mais mandava no Giro d’Italia, Milano-Sanremo e Il Lombardia.

Zomegnan foi diretor do Giro de 2004 a 2011

Sem meias palavras a entrevista começa apontando uma realidade: “Em 1999 quando Marco Pantani foi retirado do Giro d’Italkia em Madorna di Campligio pela presença excessiva de glóbulos vermelhos no sangue, provavelmente devido à famigerada Epo,, quase todos os dez melhores da classificação faziam uso de substâncias dopantes para melhorar a oxigenação do sangue e ter um desempenho esportivo mais competitivo” .

E arremata endossando palavras que ecoam em quem acompanha ciclismo há anos:   “Foram anos sombrios no final do século em que os ciclistas procuravam melhorar o seu desempenho em todos os sentidos, nada era proibido, mas simplesmente governado”. Apontando também à fragilidade dos controles antidoping daquela época, “Não se combatia efetivamente o uso da eritropoietina, mas simplesmente os globules vermelhos produzidos artificialmente deveriam permanecer dentro de cinquenta por cento do percentual no sangue. Ou seja o quarenta e nove do percentual era permitido, mais um por cento de tolerância. Cinquenta e um por cento estava fora das regras”.

A seguir a conversa de Angelo Zomegnan com o jornalista Giovanni Terzi:

Você quer dizer que era uma prática consolidada para quase todos os ciclistas?

“Absolutamente sim. Não se proibia o uso da eritropoietina, mas se procurava fazer a gestão de seus uso, o que não é uma coisa eticamente bonita. Vou dar um exemplo: é como se o furto de dinheiro fosse permitido e não punido quando o valor fosse abaixo de mil euros, mas se o valor for de mil e um euros você iria para a prisão”.

Algo bem diferente do sonho de ciclismo com que você cresceu na província lombarda….

“O ciclismo e a metáfora da vida. É um esporte que exige sacrifício, suor e uma meta a ser alcançada. Acredite que quando uma pessoa começa a acompanhar corridas de ciclismo de estrada, ela não consegue mais ficar sem isso e foi assim que comecei a escrever para os jornais locais também. Eu era um ‘abusivo’ , assim com essa forma não muito politicamente correta eram chamados os sem contrato, hoje de forma mais educada são os chamados freelancers. Devagarinho comecei a escrever até chegar, em 2003 ,  a vice-diretor da Gazzetta dello Sport…”

Voltando ao tema Pananti. Aquilo do teste de Epo em Madonna di Campiglio foi uma tragédia humana e esportiva sem precedentes. O que você sabe sobre esse momento?

“Afirmo que tenho um carinho enorme pela mãe do Marco, dona Tonina, que luta como uma leoa  para, legitimamente, chegar a uma verdade jurídica do ocorrido.

Certamente, como eu já disse, todos estavam tentando melhorar o desempenho através de uma maior oxigenação do sangue e isso é muito importante dizer porque eles tentaram colocar o  Pantani como o delinquente dentro de um convento beneditino e não era isso. Havia os que tomavam Epo, os que se trancavam em uma câmara hiperbárica, como Gotti, e quem se enchia de viagra”.

5 de Junho de 1999 Pantani é escoltado pelos carabinieri para sair do Hotel em Madonna Di Campiglio, após o exame que apresentou uma taxa de hematócritos elevada –
foto: Pascal Pavani/AFP – Getty Images

Até mesmo o Viagra?

“Acredite, podemos dizer que era evidente! Havia algumas podium-girls que ficavam constrangidas que, após duzentos quilômetros de esforço exaustivo os ciclistas mostravam sua parte intima pronta para um ato sexual”.

A Epo era a substância mais usada pelos ciclistas?

“Com certeza. Basicamente, se dopava o sangue aumentando os glóbulos vermelhos que são os meios pelos quais o oxigênio é transportado dos pulmões para os músculos e a maior concentração destes pode melhorar a capacidade aeróbia de um atleta e consequentemente também sua resistência “. Pantani sempre se defendeu dizendo que na noite anterior o seu percentual de eritropoietina era abaixo do 50% e que seria impossível uma elevação nos níveis durante a noite.

Que você pensa sobre isso?

“Era sabido que em Madonna di Campiglio a UCI faria controles, assim cada equipe tinha o seu equipamento para o controle indireto da Epo no sangue. Para mim, aqui está o erro. Havia equipes que faziam investimentos pesados nas práticas proibidas e nos controles preventivos e outras que confiavam o serviço a um simples massagista”.

É uma acusação muito forte, você não acha Zomegnan?

“É a verdade. Pantani era um profissional absoluto e talvez quem estava ao seu lado não estava à altura”.

Estamos falando do massagista do campeão de Cesenatico?

“Não gosto de quem declarou ‘levarei os segredos para o túmulo’. Aqui temos uma família. Mamma Tonina e o pai Ferdinando que aguardam notícias e desejam conhecer a verdade. Todos devem colaborar para que ela apareça”.

Falou-se de apostas clandestinas e as declarações de Vallanzasca que contou de ter sido avisado de que movimentações estranhas que queriam que Pantani não vencesse. É verdade? A  quem Pantani poderia incomodar ?

“Eu também soube das apostas clandestinas; mas uma coisa é certa que um fenômeno como ele e com o seu caráter não agradava a todos”.

Poderia explicar melhor

“Marco era um rapaz simples que escolheu ficar na sua equipe, a Mercatone Uno, não aceitando outras ofertas. Isto não te faz simpático aos olhos de quem quer te fazer trocar de equipe. E aí vale relembrar o   épico retorno de 30 de maio de 1999, a poucos dias da etapa de Madona di Campiglio.  No pé da última subida que leva ao Santuário de Oropa, Pantani teve que parar colocar o pé no chão. A corrente tinha caído e com isso parecia que sua chance de ganhar uma etapa que lhe dava maior segurança a sua maglia rosa conquistada no dia anterior. O Pirata se arranjou como mecânico,  perdeu contato com o grupo da ponta quando estava a apenas 10 quilômetros do final. Foi ali que ele deu uma reviravolta das mais emocionantes da história do ciclismo de etapas. Em poucos quilômetros superou quarenta e nove ciclistas e foi à caça de Gotti, Jalabert e outros adversários da classificação geral que comandavam a corrida”.

Além disso demonstrou naquela ocasião ser um grande campeão…

“Marco era um rapaz todo generoso, na vida como no esporte. Relembro Charly Gaul (ndt.: ciclista francês campeão do TDF’1958 e do Giro’1956 e 59), um dos maiores escaladores da história do ciclismo apelidado de “O Anjo da Montanha” que o aguardava fora do trailer para cumprimenta-lo e, acredite, esse gesto deixa claro o quanto Marco era considerado um campeão extraordinário”.

foto: Tim de Waele/Getty Images

Você fala de um campeão generoso e perfeccionista, mas quais eram as outras características de Pantani?

“Certamente ele era humanamente frágil e por isso os acontecimentos de Madonna di Campligio destruíram sua vida, e era um homens de excessos. Lembro que ele me contava que quando estava sob pressão ele mordia a língua para sentir o gosto do sangue”

E depois vieram as más companhias…

Ele se distanciou do mundo esportivo e antes de mais nada a sua alma morreu. Eu o vi uma noite em Milão, não era mais ele”.

Na sua opinião era possível salvar o Pantani?

“Isso eu não sei, os exemplos são os primeiros da classe e se erram não o fazem com pontuação, mas com sintaxe”.

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