Títulos mundiais, medalhas olímpicas, destaque nacional, foto nas capas das principais revistas do país, testimonial de várias marcas, com tudo isso a super-campeã, a Rebecca Twigg tinha tudo para estar curtindo sua aposentadoria tranquilamente em uma casa nas montanhas ou numa praia. Mas a realidade é muito mais dura do que se pode imaginar e atualmente ela é uma Sem Teto da cidade de Seatle e expôs sua realidade para mostrar que nem todos os moradores de rua são viciados em drogas ou alcoólatras
Rebecca Twigg surgiu para o ciclismo dos Estados Unidos quando este passava por um boom. Eram os tempos da Coor’s Classic para os homens, da badalada equipe 7-Eleven, do crescimento de Greg LeMond e logo de início ela começou arrebentando, venceu campeonatos nacionais, e a Women’s Challenge, uma grande volta no oeste do país, desenhada para alavancar o ciclismo feminino.
Seis títulos mundiais e duas medalhas olímpicas para a grande maioria dos esportistas seriam a garantia de uma boa vida, e mesmo depois de encerrada a carreira alguma badalação e possíveis contratos para uma ou outra publicidade.
“Alguns dos dias difíceis são realmente dolorosos quando você está treinando para as corridas, mas ser sem-teto, quando você tem pouca esperança ou conhecimento de onde é a linha de chegada, é igualmente difícil.”
Mas não foi isso que aconteceu com a campeã estadunidense Rebecca Twigg que aos 56 anos, atualmente é uma sem teto. Uma homelessem seu país, morando em abrigos na cidade de Seattle, mas que teve a força de contar sua história ao jornalista Scott Greenstone, do The Seatle Times para mostrar ao público que nem todos os moradores de rua são viciados em drogas ou alcoólatras e que existem muitos como ela, que lutaram com seus empregos e que estão confusos com o que fazer de suas vidas.
Ao longo da sua carreira se transformou em uma das mais importantes ciclistas dos Estados Unidos. Entre os anos 80 e 90 o nome de Rebecca Twigg figurava sempre entre os das mais fortes e isso lhe garantiu destaque, foi capa de praticamente todas as revistas de ciclismo, aparecia em páginas de publicidade como testimonial de renomadas marcas esportivas (de bicicletas, óculos, roupas e capacetes), e ganhou destaque em reportagens da mais importante revista de esportes a Sports Illustrated e da revista de variedades Vanity Fair.
A relação de Rebecca Twigg com os pedais começou aos 7 anos, quando subiu pela primeira vez em uma bicicleta sem rodinhas. Montou na bike e saiu como se já fosse intima pedalando, mas apesar da facilidade, ela não sabia como frear, acabou chocando-se de frente com uma parede. “Eu fui para a estrada, eu nasci para fazer isso. Exceto pelo pequeno detalhe de como parar. Eu não sou muito boa planejando…” comentou a ex-campeã ao jornalista do Seatle Times.
Rebecca sempre foi muito rápida e inteligente – não só para as corridas como para os estudos. Entrando para a universidade com apenas 14 anos, mesmo antes de concluir o colégio, aonde se formou em biologia e ciências da computação.
Aos 17 anos, ela foi vista, à época, pelo badalado treinador Eddie Borysewicz que ficou impressionado com o desempenho da garota. Dois anos depois, quando conquistou o título mundial da perseguição individual em Leicester/82 tornando-se a primeira ciclista dos Estados Unidos a conquistar um título mundial da perseguição individual, ele a convidou para morar no Centro Olímpico de Treinamento, em Colorado Springs.
O objetivo era claro: a preparação para os Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984 quando pela primeira vez as mulheres disputariam provas de ciclismo. Correndo em casa nos Jogos de Los Angeles de 1984, ela ficou com a medalha de prata na prova de estrada; há quem diga que ela deixou a sua compatriota Connie Carpenter se adiantar para levar o ouro no sprint. Os motivos segundo contam alguns relatos é que Rebecca poderia ter realizado uma autotransfusão, à época não detectada e “permitida”, em uma data muito próxima à corrida.
Em 1987, famosa com apenas 26 anos e com alguns títulos, saindo de um casamento que não foi adiante, ela resolveu deixar o ciclismo; as fortes e constantes dores provocadas por uma queda um ano antes no Texas, foram mais fortes que a vontade de pedalar e assim por 3 anos ela passou a trabalhar como programadora de computadores.
Ao saber que a prova da perseguição individual, sua especialidade, estaria no programa olímpico de Barcelona/92 ela resolveu encarar o desafio e retornar ao ciclismo. Com 9 meses de preparação ela conquistou a medalha de bronze, no ano seguinte conquistaria mais um título mundial da modalidade.
Seu último grande momento nas pistas, aconteceu em setembro de 1995 no velódromo de Bogotá. Poucos meses antes ela sofreu um grave acidente quando treinava, o resultado foi uma fratura na clavícula, uma placa de titânio com sete parafusos de fixação, além disso durante a cirurgia os médicos foram obrigados a retirar alguns fragmentos de osso que circulavam por uma de suas artérias.
Com toda essa dramaticidade, entrou na pista para arrasar com que alinhasse ao seu lado. Na final, cruzou com a italiana Antonella Bellutti que não teve forças para enfrentar Twigg que além de levar o ouro, estabeleceu o recorde mundial.
As olimpíadas de 1996 poderiam servir para encerrar sua carreira, aos 33 anos, finalmente com um ouro olímpico em sua especialidade pois ela era uma das favoritas. A USCycling jogou pressão e a ordem era para que se repetisse o sucesso de Los Angeles/84 e para isso estava envolvida, também, a utilização da SuperBike. Um projeto desenvolvido em conjunto com a GT. Rebecca, não se adaptou ao modelo monocasco e à posição para pedalar, reclamando da pressão oficial para o uso dessa bicicleta desenvolvida especialmente para os Jogos. Para agravar o descontentamento, seu técnico pessoal de mais de uma década, Eddie B., teve seu credenciamento negado pela USCF.
O mal estar foi intenso e ficou claro que a relação com o técnico da seleção dos EUA, Chris Carmichael, estava desgastada e o ponto final foram os comentários relativos aos métodos de treinamento de Twigg após sua decepcionante atuação nas quartas-de-final da perseguição individual. Ela disputou uma primeira bateria com a Superbike da GT, porém para o segundo confronto ela preferiu um modelo mais tradicional, mesmo assim não avançou às quartas-de-final.
Ela ainda teria pela frente a disputa da contra-relógio individual, mas resolveu abandonar a delegação, voltando para sua casa em Colorado Springs. Entre as trocas de farpas de Rebecca e Carmichael a ciclista foi ao ponto “Eles têm que apresentar algumas desculpas”, referindo-se aos desempenho decepcionante da equipe norte-americana nas Olimpíadas, apesar do programa multimilionário de treinamento e de todo o discurso tecnológico para produzir a SuperBike, a única medalha veio com Erin Hartwell no Km contra o relógio.
“Depois de fazer aquilo que parece que você nasceu para fazer, é difícil encontrar algo que seja tão bom”
Ela ainda encarou o mundial de 1997 em Perth, mas acabou na 8ª posição, decretando aí sua aposentadoria e voltando a trabalhar na área de informática. Mas nada se comparava à vida de treinamentos, viagens e assim resolveu voltar a estudar para se formar como técnica em massagem terapêutica, depois se casou e teve uma filha.
Mas aquele não era seu mundo, faltas ao trabalho, abandono do emprego com medo de ser demitida, coisa que não estava nos planos dos seus patrões, mas que repercutiam em sua cabeça.
O dinheiro para Rebecca sempre foi curto, e ficou ainda mais apertado com o fim da carreira desportiva. Segundo ela, nem mesmo no auge de sua carreira conseguiu ganhar mais de USD 50 mil por ano (pouco mais de 194,5 mil reais), mostrando que desde sempre o ciclismo feminino foi pouco valorizado se comparado aos salários de outras estrelas com a qualidade e o número de títulos que ela conquistou.
Apesar de toda sua bela vida esportiva, a infância de Rebecca não foi fácil, aos 14 anos quando se iniciou no ciclismo morava com sua mãe e irmã em um porão de Seatle. Poucos meses antes de completar 16 anos, sua mãe a colocou para fora de casa, sem opção, pegou sua bicicleta e foi até a rodoviária aonde passou a noite acordada, pela manhã foi à biblioteca da Universidade, tirou um cochilo antes de ir para a casa do técnico da equipe. Desde então ela praticamente não teve uma casa, e mesmo sendo uma estrela do ciclismo passou da casa de amigos para os hotéis durante as corridas. Segundo ela: “Eu meio que perdi minha base porque viajei muito”.
Fora das pistas a ansiedade era desmotivadora. Recebia chamados de empego e ela não respondia os e-mails. Mente e corpo estavam colapsando e os médicos não apontavam uma saída. Na entrevista ao Seatle Times, disse que chegou a cogitar o suicídio, mas se convenceu que as coisas “não são muito melhores do outro lado”.
O declínio se tornou mais intenso há cinco anos, quando foi demitida da sua função de suporte de TI e retornou para Seatle quando desistiu de buscar um emprego ao perceber que os postos de trabalho em ciências da computação estavam todos voltados aos recém-formados.
Sem emprego, foi passar uma temporada na casa e parentes com quem deixou sua filha de 14 anos, depois foi morar dentro do seu carro. A bicicleta que ocupava lugar no banco traseiro do carro, foi dada de presente, e começou a circular pela cidade.
Começou a vagar de um lado a outro, e isso a colocou na condição de sem teto, uma homeless. Twigg compara a falta de moradia a uma viagem sem fim. “Você nunca pode ir para casa descansar”, declarou a ex-campeã que deixou seu carro para viver em abrigos para mulheres e moças em Seattle.
A ex-ciclista já dormiu em pontos de ônibus, e segundo ela, é graças a esses pontos de ônibus que ela ainda está viva, nesses momentos ela procurava apenas um local para ficar de pé, apesar de muitas vezes ser perseguida por seguranças;
Em fevereiro, durante uma nevasca intensa, ela viu pessoas dormindo nas ruas e se sentiu mal por ter uma cama quente em um abrigo. A ex-campeã, sentia uma sensação de culpa pois teve “vantagens injustas” na vida que não foram embora. Ela decidiu dormir fora do alojamento, mesmo que apenas por uma noite. Comprou alguns sacos de lixo, pegou um cobertor fino e deitou-se numa calçada no centro da cidade, colocando uma sacola sobre as pernas e uma sacola sobre a cabeça.
“Eu estava tremendo, em parte por medo e em parte por causa do frio”, disse Twigg. “Eu tive esse sentimento de não pertencer a lugar nenhum. Eu apenas tive minha cabeça realmente confusa, totalmente confusa sobre o que eu deveria estar fazendo. ” . Às 5 da manhã, um segurança a acordou. Seu cobertor estava molhado. Ela foi para um abrigo que a deixou entrar e dormiu, sentada, por meia hora. Ela sabia que não poderia passar mais uma noite lá fora.
Pouco tempo atrás ela contraiu uma forte gripe e foi parar no hospital, quando convenceu um parente próximo a leva-la a casa para que ela pudesse se recuperar. Nem seus familiares que moram em Seatle ou sua filha de 18 anos deram declarações sobre a situação de Rebecca.
Sobre a condição de sem teto e sua experiência pessoal, Twigg vê a necessidade de que se construam moradias mais acessíveis. “Abrigos são ótimos, mas tem que haver um próximo passo”, disse Twigg. Ela não pedala mais, não é reconhecida pelo público e não aceita moradia, mesmo quando a ajuda é oferecida por pessoas que descobriram sua condição; sua falta de moradia foi mencionada em um artigo recente da Velonews.
“O ponto não é tanto que eu precise de ajuda, é que há um monte de pessoas que precisam de ajuda – 12.000 nesta área, meio milhão no país”, disse Twigg. “A ajuda deve ser fornecida para todos, não apenas alguns.” finalizou uma das maiores campeãs da perseguição individual e uma das mais fortes ciclistas de uma era.